I. Introdução
A retroatividade de normas administrativas, especialmente no campo do Direito Ambiental, é uma questão complexa que envolve o equilíbrio entre o poder de regulamentação do Estado e os direitos fundamentais dos administrados. No Brasil, a retroatividade de normas sancionatórias encontra limites rígidos, estabelecidos pela Constituição Federal, para evitar abusos de poder e garantir a segurança jurídica.
Neste artigo, discutiremos o princípio da irretroatividade das normas administrativas sancionatórias, com foco na Instrução Normativa SEMARH nº 9, de 30 de março de 2023, publicada pelo Estado do Piauí. A referida instrução, ao prever a aplicação retroativa de suas disposições ao início do ano de 2023, suscita importantes questões constitucionais e administrativas. Analisaremos o impacto dessa retroatividade no contexto das sanções ambientais e a potencial nulidade de atos administrativos praticados com base em normas inconstitucionais.
II. Princípio da Irretroatividade de Normas Administrativas Sancionatórias
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXVI, prevê que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, e, no inciso XL, estabelece que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Embora esta última disposição refira-se ao direito penal, a doutrina e a prática jurídica consagram a sua aplicação por analogia ao direito administrativo sancionador. Assim, normas administrativas que impõem sanções ou aumentam obrigações não podem retroagir, exceto quando forem mais benéficas ao infrator.
No âmbito do Direito Ambiental, onde a imposição de sanções administrativas é frequente e visa à proteção de bens coletivos de elevada importância, como o meio ambiente, a observância do princípio da irretroatividade é essencial para assegurar que os infratores sejam julgados segundo as regras vigentes à época dos fatos. A retroatividade de uma norma que cria novas sanções ou agrava penalidades viola o princípio da segurança jurídica, ao gerar instabilidade nas relações entre o poder público e os particulares.
III. A Retroatividade na Instrução Normativa SEMARH nº 9/2023
A Instrução Normativa SEMARH nº 9/2023, publicada pelo Estado do Piauí, tem como objetivo regular os procedimentos administrativos para a apuração de infrações ambientais, a aplicação de sanções e a defesa dos administrados. O artigo 101 da referida instrução prevê que “esta Instrução Normativa entra em vigor na data de sua publicação, com efeitos retroativos, no que couber, ao dia 1º de janeiro de 2023.”
Essa disposição é problemática, uma vez que a retroatividade de normas administrativas sancionatórias que imponham obrigações ou sanções mais gravosas fere diretamente o princípio da legalidade, previsto no artigo 37 da Constituição Federal. Esse princípio exige que qualquer ato da administração pública, especialmente no que se refere à imposição de sanções, tenha fundamento em lei vigente no momento da ocorrência dos fatos que originam a punição.
Ao retroagir os efeitos da instrução normativa para janeiro de 2023, o órgão ambiental do Estado do Piauí poderia aplicar novas regras processuais ou substantivas a infrações cometidas antes da sua publicação, o que contraria o direito dos administrados a serem julgados com base nas normas vigentes no momento da prática da infração. Tal prática, além de inconstitucional, compromete a confiança legítima que os administrados depositam na estabilidade do ordenamento jurídico.
IV. Impactos da Retroatividade nas Sanções Ambientais
A retroatividade de normas sancionatórias pode gerar consequências graves para os administrados. No caso específico do Piauí, a aplicação retroativa da Instrução Normativa SEMARH nº 9/2023 pode resultar em:
1. Alteração dos critérios de apuração de infrações ambientais: Se a nova norma alterar os parâmetros de fiscalização, como a classificação da gravidade das infrações, os administrados podem ser punidos com base em critérios mais rigorosos do que os previstos na legislação vigente à época dos fatos.
2. Aumento de multas e sanções: A retroatividade pode implicar a aplicação de multas em valores superiores aos que eram devidos no momento da infração, especialmente se a nova norma estabelecer faixas mais elevadas de penalidades. Tal medida seria claramente inconstitucional, pois viola o princípio da proporcionalidade, que exige que as sanções sejam adequadas à gravidade do ato ilícito e às circunstâncias em que foi praticado.
3. Insegurança jurídica e risco de nulidade dos atos administrativos: A aplicação retroativa de sanções pode gerar grande insegurança jurídica, tanto para os administrados quanto para a administração pública. Os administrados, ao serem penalizados com base em normas retroativas, podem questionar judicialmente a validade das autuações e processos administrativos, alegando a inconstitucionalidade da retroatividade. Caso seja reconhecida a inconstitucionalidade, os atos administrativos praticados com base nessa instrução poderão ser declarados nulos, gerando a necessidade de revisão de multas e sanções já aplicadas.
V. Potenciais Nulidades Administrativas no Estado do Piauí
Levando em consideração que estamos no dia 5 de outubro de 2024, é possível que o órgão ambiental do Estado do Piauí tenha praticado diversos atos administrativos com base na retroatividade prevista pela Instrução Normativa SEMARH nº 9/2023. Isso implica que:
1. Autos de infração lavrados entre janeiro e março de 2023 podem ter sido julgados com base em normas que não estavam em vigor no momento da prática da infração. Isso pode resultar na nulidade dos autos de infração e das decisões administrativas que os confirmaram.
2. Sanções aplicadas retroativamente, como multas e embargos, poderão ser invalidadas, caso os administrados ingressem com ações judiciais para contestar a constitucionalidade da instrução normativa. A nulidade desses atos resultaria em um impacto significativo na arrecadação de multas e no processo de fiscalização ambiental, prejudicando a efetividade da proteção ao meio ambiente no Estado do Piauí.
3. A retroatividade pode também prejudicar acordos firmados em termos de ajustamento de conduta (TAC), caso as obrigações impostas aos administrados tenham sido agravadas com base nas novas disposições retroativas. Esses acordos poderão ser judicialmente desconstituídos, caso sejam demonstrados vícios de legalidade.
VI. Conclusão
A retroatividade de normas administrativas sancionatórias, como a prevista no artigo 101 da Instrução Normativa SEMARH nº 9/2023, constitui violação direta ao princípio da irretroatividade das normas, conforme previsto na Constituição Federal. Ao permitir a aplicação retroativa de sanções e obrigações, o órgão ambiental do Estado do Piauí pode ter incorrido em práticas inconstitucionais, sujeitando-se à declaração de nulidade dos atos administrativos correspondentes.
Para garantir a segurança jurídica e a estabilidade das relações entre a administração pública e os administrados, é fundamental que as normas sancionatórias sejam aplicadas prospectivamente, respeitando os direitos adquiridos e as expectativas legítimas. No caso do Piauí, a retroatividade da referida instrução normativa deve ser revista para evitar maiores prejuízos ao regime de proteção ambiental e à confiança dos administrados no sistema jurídico.
Flávio Monteiro Napoleão
Advogado OAB/PI 9.068
REFERÊNCIAS
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