- Introdução
A Constituição Federal de 1988 consagra uma série de princípios que orientam a atuação da administração pública, incluindo o princípio do devido processo legal, a legalidade e a liberdade de exercício de atividades econômicas. Essas garantias são particularmente relevantes no contexto do licenciamento ambiental, que desempenha um papel fundamental tanto na preservação do meio ambiente quanto na viabilidade econômica de empreendimentos empresariais. Entretanto, a Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023, publicada pelo Estado do Piauí, introduz em seu artigo 99 uma exigência potencialmente inconstitucional: a proibição de licenciar empreendimentos com multas pendentes de pagamento ou regularização. Este artigo analisa a possível inconstitucionalidade do dispositivo, considerando o seu impacto no setor empresarial e as garantias constitucionais envolvidas.
- A Competência Legislativa e Administrativa
A competência para legislar sobre questões ambientais é estabelecida pela Constituição Federal nos artigos 23, VI e VII, e 24, VI, que definem a competência concorrente entre União, Estados e Municípios. Além disso, o artigo 225 da Constituição impõe ao poder público o dever de proteger o meio ambiente, incluindo a fiscalização e a aplicação de sanções. No entanto, essa competência deve ser exercida em consonância com os direitos e garantias fundamentais, particularmente os princípios da legalidade (art. 5º, II), devido processo legal (art. 5º, LIV) e a liberdade de exercício de atividade econômica (art. 170).
A Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023 visa regulamentar a aplicação de sanções administrativas e o licenciamento ambiental no Estado do Piauí, conforme sua competência administrativa local. No entanto, é necessário verificar se o artigo 99 desta norma está em conformidade com a Constituição Federal e os princípios que protegem os direitos dos administrados, especialmente as empresas que dependem do licenciamento ambiental para operar.
- O Artigo 99 e suas Incongruências com os “Considerandos” da Norma
O artigo 99 da referida Instrução Normativa estabelece que a SEMARH não poderá licenciar empreendimentos com multas pendentes de pagamento ou regularização. Essa imposição cria um bloqueio absoluto à obtenção de licenças ambientais para empresas que tenham multas pendentes, independentemente da fase recursal em que essas penalidades se encontrem.
Os “considerandos” iniciais da Instrução Normativa destacam a necessidade de conformidade com a legislação federal e os princípios constitucionais, como a proporcionalidade e a razoabilidade. Todavia, o artigo 99 parece divergir desses próprios princípios ao impor uma sanção desproporcional a empreendedores, uma vez que impede o licenciamento mesmo quando ainda há recurso pendente ou questões administrativas a serem resolvidas.
- O Artigo 75 e o Efeito Suspensivo dos Recursos
Outro ponto de conflito entre o artigo 99 e a própria norma reside no artigo 75 da mesma Instrução Normativa, que estabelece que os recursos interpostos contra decisões não definitivas terão efeito suspensivo no que tange ao pagamento de penalidades pecuniárias. Isso significa que, enquanto um recurso administrativo estiver pendente, o pagamento da multa não pode ser exigido de imediato. No entanto, o artigo 99 ignora esse efeito suspensivo ao impedir que o licenciamento seja concedido mesmo durante o curso de um recurso. Essa contradição interna evidencia uma violação do devido processo legal e da ampla defesa, garantidos pelo artigo 5º, LIV e LV da Constituição Federal.
- Subsidiariedade do Decreto Federal n.º 6.514/2008 e o Efeito Suspensivo no Âmbito Federal
Além disso, o artigo 100 da Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023 determina que, nas omissões da norma, aplicam-se subsidiariamente as disposições do Decreto Federal n.º 6.514/2008. Esse decreto, em seus artigos 127 e 128, § 2º, prevê que o recurso interposto contra penalidades de multa terá efeito suspensivo, garantindo que as sanções financeiras não possam ser executadas enquanto não houver decisão final. A aplicação desse princípio no âmbito estadual deveria, portanto, suspender qualquer exigibilidade de pagamento de multa até que todos os recursos sejam definitivamente julgados. O artigo 99 da Instrução Normativa, ao ignorar essa previsão e bloquear o licenciamento, contraria frontalmente essa regra federal subsidiária.
- Ofensa aos Princípios Constitucionais
O artigo 99 da Instrução Normativa SEMARH n.º 09/2023 impõe um grave bloqueio ao licenciamento de empreendimentos com multas pendentes, mesmo quando os administrados ainda podem recorrer administrativamente. Essa disposição contraria diversos princípios fundamentais consagrados pela Constituição Federal de 1988, incluindo os princípios da legalidade, devido processo legal e liberdade de exercício de atividade econômica. Abaixo, analisamos detalhadamente como o dispositivo afronta cada um desses princípios constitucionais:
6.1. Princípio da Legalidade (Art. 5º, II da CF/88)
O princípio da legalidade, consagrado no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Esse princípio assegura que todas as ações da administração pública, especialmente as que impõem sanções ou limitam direitos, devem estar estritamente fundamentadas em lei, e não em regulamentos infralegais.
O artigo 99 da Instrução Normativa SEMARH impõe uma restrição ao licenciamento ambiental sem que tal proibição tenha previsão em lei formal aprovada pelo poder legislativo competente. Ainda que a administração pública tenha a prerrogativa de editar normas regulamentares para viabilizar a execução de leis, tais regulamentos não podem criar obrigações ou restrições que extrapolem os limites legais. No caso, o artigo 99 da Instrução Normativa SEMARH cria uma obrigação e uma sanção (a proibição de licenciamento) que não têm previsão específica em lei, infringindo diretamente o princípio da legalidade.
Ademais, a Constituição, em seu artigo 37, caput, exige que a administração pública observe a legalidade estrita em todos os seus atos. O artigo 99 viola essa disposição ao impor uma penalidade que não está prevista de forma clara e expressa em nenhuma norma legal previamente aprovada, o que reforça a sua inconstitucionalidade.
6.2. Princípio do Devido Processo Legal (Art. 5º, LIV da CF/88)
O artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal estabelece o princípio do devido processo legal, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Esse princípio visa garantir que todas as pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas, tenham o direito a um procedimento justo e regular antes de serem sujeitas a qualquer tipo de sanção ou restrição por parte do Estado.
O artigo 99 da Instrução Normativa SEMARH contraria frontalmente esse princípio ao impor uma sanção automática e irrestrita (o impedimento do licenciamento ambiental) baseada na mera existência de uma multa pendente de pagamento ou regularização, independentemente da fase recursal ou da possibilidade de contestação por parte do administrado.
Violação do Direito de Defesa e Contraditório
A Constituição, em seu art. 5º, LV, assegura aos litigantes, no âmbito judicial e administrativo, o direito ao contraditório e à ampla defesa, o que significa que nenhum indivíduo pode ser prejudicado sem ter tido a oportunidade de apresentar sua defesa de forma completa e adequada. Ao impedir que uma empresa obtenha licenciamento apenas por ter multas pendentes, sem levar em consideração a existência de um processo administrativo em curso e sem que haja decisão final, o artigo 99 da IN SEMARH priva os administrados de um processo justo. O recurso administrativo é um instrumento fundamental para a proteção dos direitos dos cidadãos e empresas, e sua mera pendência não pode ser usada como justificativa para impedir o exercício de uma atividade legítima.
Contradição com o Artigo 75 da Própria Norma
A incongruência entre o artigo 99 e o artigo 75 da mesma Instrução Normativa SEMARH agrava ainda mais a violação do devido processo legal. O artigo 75 prevê que os recursos interpostos contra decisões administrativas têm efeito suspensivo quanto ao pagamento das multas pecuniárias, o que significa que o pagamento não pode ser exigido enquanto o recurso estiver pendente. No entanto, o artigo 99 ignora completamente essa previsão, ao bloquear o licenciamento mesmo quando um recurso ainda está em andamento. Isso gera uma violação direta do direito ao contraditório e à ampla defesa, ao impor uma restrição antes que haja decisão final sobre a multa.
6.3. Liberdade de Exercício de Atividade Econômica (Art. 170 da CF/88)
A liberdade de exercício de atividade econômica é outro direito fundamental protegido pela Constituição, previsto no art. 170, caput, que estabelece os princípios da ordem econômica, e no inciso IV do mesmo artigo, que reconhece a livre iniciativa como um dos pilares fundamentais da economia brasileira. Esse princípio assegura a todos os cidadãos e empresas o direito de desenvolver suas atividades econômicas livremente, desde que observadas as regulamentações aplicáveis.
O artigo 99 da Instrução Normativa SEMARH fere diretamente esse princípio ao impedir o licenciamento de empresas com multas pendentes de pagamento, mesmo que essas multas ainda estejam sendo discutidas no âmbito administrativo. O impedimento do licenciamento ambiental afeta diretamente a capacidade da empresa de operar, criando uma sanção indireta ao exercício de sua atividade econômica.
Desproporcionalidade da Medida
A desproporcionalidade dessa restrição é evidente quando se considera que até mesmo uma multa de valor insignificante pode levar ao bloqueio de um grande empreendimento. Por exemplo, uma empresa de grande porte, responsável por empreendimentos complexos e de elevado impacto econômico, poderia ter suas operações paralisadas devido a uma multa administrativa de baixo valor, enquanto ainda discute a sua regularidade. Isso configura uma violação ao princípio da proporcionalidade, garantido implicitamente pelo artigo 5º, LIV da Constituição Federal. O princípio da proporcionalidade exige que as medidas adotadas pela administração pública sejam adequadas e proporcionais à gravidade da infração cometida, o que claramente não ocorre no caso de aplicação do artigo 99 da IN SEMARH.
- Análise do Art. 99 da Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023 à Luz das Súmulas Vinculantes 28 e 21 do STF
A inconstitucionalidade do artigo 99 da Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023 se torna ainda mais evidente quando analisada em conjunto com as Súmulas Vinculantes 28 e 21 do Supremo Tribunal Federal (STF), que tratam da exigência de depósito prévio para a admissibilidade de ações judiciais e recursos administrativos. A seguir, será analisada a aplicabilidade dessas súmulas ao caso em questão, com o objetivo de reforçar a argumentação jurídica contra a imposição de restrições administrativas sem a devida observância dos direitos fundamentais.
Súmula Vinculante 28 – Inconstitucionalidade da Exigência de Depósito Prévio para Ação Judicial
Enunciado: “É inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário.”
A Súmula Vinculante 28 foi aprovada pelo STF para vedar a imposição de um depósito prévio como condição para que um contribuinte possa questionar judicialmente a exigibilidade de crédito tributário. O entendimento do Supremo é baseado no princípio da inalienabilidade do direito de acesso à Justiça e no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, que garante que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”
Embora a súmula se refira diretamente a créditos tributários, sua lógica é plenamente aplicável ao caso do artigo 99 da Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023. O dispositivo, ao impedir o licenciamento de empreendimentos com multas ambientais pendentes, na prática cria uma restrição ao exercício de um direito (o direito de obtenção do licenciamento ambiental) até que o administrado tenha liquidado ou regularizado essas pendências. Assim como no contexto tributário, a exigência de quitação prévia para permitir o exercício de um direito administrativo (o licenciamento) fere o direito ao contraditório e à ampla defesa garantido pela Constituição no artigo 5º, LV, e pode ser vista como uma tentativa de coercitividade para forçar o pagamento imediato de uma dívida ainda discutível.
Ainda mais grave é o fato de que, no âmbito ambiental, o licenciamento não é apenas um procedimento burocrático, mas sim um requisito essencial para o exercício da atividade econômica, o que reforça o caráter coercitivo e desproporcional da medida. Se aplicado o mesmo raciocínio da Súmula Vinculante 28, o STF certamente entenderia que é inconstitucional condicionar o licenciamento ambiental ao pagamento prévio de multas, assim como seria inconstitucional condicionar o acesso ao Judiciário ao depósito de um crédito tributário.
Súmula Vinculante 21 – Inconstitucionalidade da Exigência de Depósito ou Arrolamento Prévios para Recurso Administrativo
Enunciado: “É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo.”
A Súmula Vinculante 21 é ainda mais direta em relação ao tema, pois trata especificamente de situações onde o direito de recorrer administrativamente está condicionado ao pagamento prévio de um depósito ou arrolamento de bens. O entendimento do STF é que essa prática é inconstitucional, pois viola o artigo 5º, XXXIV, “a”, que assegura o direito de petição, e o artigo 5º, LV, que garante o contraditório e a ampla defesa.
No caso do artigo 99 da Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023, a situação é análoga. Embora a norma não exija diretamente um depósito ou arrolamento para a interposição de recursos administrativos, indiretamente, ela condiciona o licenciamento ambiental ao pagamento ou regularização de multas, mesmo que ainda pendam recursos administrativos. Isso cria uma restrição velada à defesa administrativa, que é equivalente a um depósito prévio. Na prática, o administrado é impedido de exercer o direito ao licenciamento – e, por consequência, de desenvolver suas atividades econômicas – até que pague a multa, ainda que esteja questionando sua validade.
Portanto, ao correlacionarmos o artigo 99 da referida norma com a Súmula Vinculante 21, fica claro que a exigência de quitação ou regularização das multas, como condição para licenciamento, cria uma barreira inconstitucional ao pleno exercício do direito de defesa administrativa. Assim como no caso da exigência de depósito prévio para interposição de recurso, essa prática restringe o direito ao contraditório e à ampla defesa, o que contraria frontalmente a jurisprudência consolidada no STF.
- Fundamentação da Inconstitucionalidade do Art. 99 da IN SEMARH nº 09/2023 à Luz de Precedentes e Decisões Judiciais
A análise da inconstitucionalidade do art. 99 da Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023, que impede a concessão de licenciamento ambiental para empreendimentos com multas pendentes, ganha ainda mais solidez quando embasada em decisões judiciais que examinam exigências administrativas semelhantes. Um exemplo crucial é o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) nos Embargos à Execução Fiscal – AC 1.0000.23.058312-2/001, relatado pela Desembargadora Yeda Athias, publicado em 25 de agosto de 2023. Esta decisão incide diretamente sobre a imposição de condições financeiras para a admissibilidade de defesas e recursos administrativos, o que ecoa as problemáticas que encontramos no art. 99 da referida IN.
Decisão do TJMG e Sua Relevância para o Art. 99
No caso analisado pelo TJMG, a defesa administrativa não foi admitida porque o administrado não recolheu a chamada “Taxa de Expediente”, o que foi considerado requisito essencial para que a defesa fosse processada no âmbito do contencioso fiscal. O Tribunal declarou inconstitucional a exigência dessa taxa, baseando-se na Súmula Vinculante 21 do STF, que veda a exigência de depósito ou qualquer tipo de arrolamento de bens como condição para a admissibilidade de recurso administrativo. Além disso, o tribunal declarou incidentalmente a inconstitucionalidade de dispositivos de uma lei estadual que exigiam tal recolhimento prévio, além de considerar nula a Certidão de Dívida Ativa (CDA) gerada com base nesse procedimento.
O ponto crucial dessa decisão é o reconhecimento de que qualquer exigência financeira prévia como condição para o exercício de um direito administrativo, especialmente o direito de defesa, é inconstitucional, violando os princípios fundamentais do devido processo legal e do direito de petição consagrados nos artigos 5º, XXXIV, e LV da Constituição Federal.
Essa decisão tem forte relevância para a discussão sobre o art. 99 da IN SEMARH nº 09/2023, que, ao impedir o licenciamento ambiental de empreendimentos com multas pendentes, indiretamente impõe uma exigência financeira para que o administrado possa continuar a exercer sua atividade econômica. A lógica é idêntica à do caso decidido pelo TJMG, pois o impedimento administrativo de obtenção de licenças, até que as multas sejam pagas ou regularizadas, é uma sanção prévia e coercitiva que fere o direito de defesa administrativa plena. Assim como a exigência da “Taxa de Expediente” em Minas Gerais, o art. 99 da IN SEMARH impõe uma restrição indireta e inconstitucional ao direito de defesa e ao exercício da atividade econômica, criando uma situação de ilegalidade que fere tanto o devido processo legal quanto o princípio da proporcionalidade.
De igual modo, em decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, o Desembargador Relator Luiz Antonio Soares analisou a exigência de depósito prévio como condição para a admissibilidade de recurso administrativo, reiterando a jurisprudência estabelecida pela Súmula Vinculante nº 21 do STF, que considera inconstitucional tal exigência. No caso em questão (AC 0012748-45.2016.4.02.5001, julgado em 23 de novembro de 2020), a devedora foi impedida de recorrer administrativamente por não ter realizado o depósito prévio exigido pela legislação vigente à época. A corte declarou nulos os atos administrativos subsequentes, já que a exigência de depósito cerceou o direito de defesa da empresa.
A decisão reforça um princípio constitucional fundamental: a vedação de barreiras financeiras para o exercício de direitos processuais administrativos, em consonância com os artigos 5º, LIV e LV, da Constituição Federal, que garantem o devido processo legal e o contraditório. Assim, qualquer norma que impõe requisitos financeiros para o exercício de direitos administrativos, como o depósito prévio ou arrolamento de bens, é incompatível com a Constituição.
Com efeito, essa decisão é altamente relevante quando aplicada ao debate sobre a legalidade do art. 99 da Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023, que condiciona o licenciamento ambiental à quitação de multas pendentes. A exigência de regularização de débitos para obtenção de licenças ambientais impõe um obstáculo financeiro similar ao que foi declarado inconstitucional no julgamento acima mencionado. Em ambos os casos, a imposição de uma condição financeira impede o administrado de exercer um direito fundamental – o direito à continuidade de suas atividades econômicas ou o direito à defesa no âmbito administrativo.
Tal como no caso da AC 0012748-45.2016.4.02.5001, o administrado que se vê diante de uma exigência de quitação de débitos para obter o licenciamento ambiental enfrenta uma forma de restrição que cerceia seu direito ao contraditório e ao devido processo legal. O artigo 99 da instrução, ao vincular o licenciamento à regularização de multas, contraria também o princípio da liberdade de exercício da atividade econômica estabelecido no art. 170 da Constituição Federal.
Jurisprudência Relevante Citada no Acórdão
No acórdão do citado TRF-2ª Região, o relator cita o entendimento do STF consolidado na Súmula Vinculante nº 21, que estabelece a inconstitucionalidade de exigências de depósito ou arrolamento prévios como condição para a admissibilidade de recursos administrativos. O STJ, por sua vez, ao julgar o REsp 1.133.027/SP, relator Min. Gurgel de Faria, também reconheceu que a confissão de dívida, exigida para recorrer, não impede o contribuinte de questionar judicialmente a validade do crédito tributário, decisão publicada em 5 de fevereiro de 2020.
Dessa forma, o art. 99 da Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023 encontra-se em rota de colisão com esse entendimento. A imposição de quitação de multas como requisito para o licenciamento fere diretamente os direitos constitucionais assegurados, resultando em um entrave que pode ser equiparado às exigências já rechaçadas pela jurisprudência dos tribunais superiores.
Igualmente, em decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo, de relatoria do Desembargador Ronaldo Gonçalves de Sousa, no Agravo Interno em Apelação nº 0022562-35.2015.8.08.0048, julgado em 22 de fevereiro de 2019, ficou estabelecido que é inconstitucional a exigência de depósito prévio ou arrolamento de bens para a admissibilidade de recurso administrativo. A corte reafirmou o entendimento da Súmula Vinculante nº 21 do STF, destacando que tal exigência fere direitos fundamentais garantidos pelo art. 5º, incisos XXXIV e LV, da Constituição Federal, que asseguram o direito de petição e o contraditório.
A decisão também reforça que condicionar a interposição de recursos administrativos ao pagamento de qualquer quantia, especialmente quando contestada, configura violação ao devido processo legal. Esse entendimento se aplica diretamente à análise da legalidade do art. 99 da Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023, que impede o licenciamento ambiental de empreendimentos com multas pendentes. Tal exigência, assim como o depósito prévio, impõe um obstáculo financeiro à defesa e ao exercício regular de atividades, configurando-se inconstitucional à luz das garantias constitucionais citadas.
Outrossim, em decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no Mandado de Segurança nº 0022502-62.2010.4.01.3800, de relatoria da Juíza Daniele Maranhão Costa, em 08 de junho de 2016, foi declarada ilegal a exigência de quitação de débitos ambientais como condição para a emissão do Documento de Origem Florestal (DOF). O entendimento do tribunal foi claro ao afirmar que, apesar da autarquia ambiental possuir o direito de cobrar seus créditos, não é admissível utilizar a prestação de serviços essenciais como meio coercitivo de cobrança.
Essa decisão estabeleceu que a administração pública, mesmo no exercício de sua função fiscalizadora, não pode condicionar a continuidade de atividades econômicas ou a prestação de serviços à quitação de dívidas, uma vez que isso violaria o princípio da legalidade, segundo o qual é necessário que a criação de obrigações decorra de lei em sentido estrito. Adicionalmente, a imposição de tal condicionante ofende o princípio da proporcionalidade e desrespeita o direito ao livre exercício de atividade econômica, garantido pelo art. 170 da Constituição Federal.
Esse precedente guarda forte correlação com o debate sobre o art. 99 da Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023, que impede o licenciamento ambiental de empreendimentos com multas pendentes. Tal medida, assim como a exigência de pagamento de débitos para a emissão do DOF, representa um meio coercitivo que viola o devido processo legal e restringe indevidamente o direito ao exercício de atividades econômicas. Assim, como já decidido pelo TRF-1, essa prática pode ser considerada inconstitucional, dado que existem meios legais apropriados para a cobrança dos créditos ambientais, sem que isso implique na interrupção ou inviabilização das atividades regulares dos administrados.
- Conclusão
A análise do artigo 99 da Instrução Normativa SEMARH nº 09/2023 demonstra sua clara inconstitucionalidade à luz de diversos precedentes jurisprudenciais e princípios constitucionais fundamentais. A imposição de restrições ao licenciamento ambiental para empreendimentos com multas pendentes, sem a devida consideração de recursos administrativos em andamento, fere diretamente os direitos ao devido processo legal, à ampla defesa, à legalidade e à liberdade de exercício de atividade econômica, consagrados na Constituição Federal.
Decisões recentes do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e do Tribunal Regional Federal da 2ª Região destacam a inconstitucionalidade de condicionar direitos administrativos ao pagamento prévio de débitos, prática que viola as Súmulas Vinculantes nº 21 e 28 do Supremo Tribunal Federal. Essas decisões reforçam que o condicionamento de atos administrativos, como o licenciamento ambiental, ao pagamento de multas pendentes, sem esgotamento do processo recursal, configura um meio coercitivo inconstitucional. Além disso, tais medidas impactam desproporcionalmente o direito ao exercício de atividades econômicas, conforme destacado pelo TRF-1, em casos que envolvem a exigência de quitação de débitos ambientais.
Assim, o artigo 99 da IN SEMARH nº 09/2023, ao impedir o licenciamento de empreendimentos com multas pendentes, adota uma medida excessiva e incompatível com os princípios constitucionais que garantem o direito ao contraditório, à ampla defesa e ao livre exercício de atividades econômicas. A jurisprudência consolidada pelos tribunais superiores oferece um caminho claro para a impugnação desse dispositivo, que deveria ser revisto para alinhar-se aos preceitos fundamentais da ordem constitucional brasileira.
Flávio Monteiro Napoleão
Advogado OAB/PI 9.068
www.napoleao.adv.br
Referências
Livros:
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2022.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 41. ed. São Paulo: Malheiros, 2023.
Decisões Judiciais:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 21. Inconstitucionalidade da exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo. Publicada em 29 de outubro de 2009.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 28. Inconstitucionalidade da exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário. Publicada em 03 de fevereiro de 2010.
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Embargos à Execução Fiscal – AC 1.0000.23.058312-2/001. Relatora: Desª Yeda Athias. Publicada em 25 de agosto de 2023.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Apelação Cível – AC 0012748-45.2016.4.02.5001. Relator: Des. Luiz Antonio Soares. Publicada em 23 de novembro de 2020.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Agravo Interno em Apelação – AGInt-Ap-Reex 0022562-35.2015.8.08.0048. Relator: Des. Ronaldo Gonçalves de Sousa. Publicada em 22 de fevereiro de 2019.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Mandado de Segurança – Ap-RN 0022502-62.2010.4.01.3800. Relatora: Juíza Daniele Maranhão Costa. Publicada em 08 de junho de 2016.
Legislação:
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Instrução Normativa SEMARH nº 09, de 30 de março de 2023. Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí.
BRASIL. Decreto Federal nº 6.514, de 22 de julho de 2008. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 jul. 2008.
Flávio Monteiro Napoleão
Advogado OAB/PI 9.068
www.napoleao.adv.br